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Versão 3.2/2008: Tudo na vida é uma questão de prioridade, comedimento e tolerância.
sexta-feira, 20 de julho de 2007
Mia Couto
















Eu cismo com umas coisas de vez em quando, às vezes eu cismo com pessoas. Em 2005 eu cismei com o Mario de Carvalho, "O Portuga", um fofo. Agora eu cismei com o Mia Couto, outro fofo. Não, ainda não li os livros dele, mas gostei muito dele na FLIP - e obviamente quero ler. E tem mais: ele é biólogo. Aí minha curiosidade foi atiçada, claro.

Fui procurar coisas sobre ele na internet, sobre a vida científica dele, mas não consegui descobrir muita coisa. As páginas das Universidades moçambicanas só têm o básico e o Mia também me parece meio distante da tecnologia. É mais bicho do mato. Constatei apenas que nossos perfis profissionais são muito parecidos! rs

Achei, entretanto, um artigo dele para uma página científica, no qual ele dá uma visão de ciência muito parecida com a que eu tenho. E embora ele fale da literatura na condição de escritor, é o que eu sinto como leitora voraz. Eu gostaria que houvesse um Mia Couto nos departamentos de pesquisa em que trabalhei. Reproduzo abaixo alguns trechos do artigo, e o texto na íntegra pode ser conferido aqui.

Aproveito para dizer que a melhor mesa aconteceu na Off-FLIP, organizada pela Língua Geral, com Agualusa e Mia Couto, mediada pelo Nelson Saute, um moçambicano que é um verdadeiro showman. Mia estava soltinho e contou história hilárias.

Vamos ao texto (os grifos são meus):

Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras
de Mia Couto

Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é tanto uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.

(...)

Não existem fórmulas feitas para imaginar e escrever um conto. O meu segredo (e que vale só para mim) é deixar-me maravilhar por histórias que escuto, por personagens com quem cruzo e deixar-me invadir por pequenos detalhes da vida quotidiana. O segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, está na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do quotidiano.

(...)

Na ciência (como em outras actividades) o mais importante não é o que chamamos científico. É o lado humano. Criou-se uma ideia de que o cientista é isento de erro, uma espécie de ser privilegiado que apenas trilha pelos atalhos do rigor e da exactidão. (...) Devemos manter o gosto por experimentar, mesmo cometendo falhas. A natureza foi evoluindo graças ao erro básico que é a mutação. Se os genes nunca falhassem na sua duplicação não haveria a diversidade necessária para a continuidade da Vida. Os processos vitais exigem, ao mesmo tempo, o rigor e o erro. Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.

(...)

Portanto, o único conselho é este: escutar. Tornarmo-nos atentos a vozes que fomos encorajados a deixar de ouvir. Tornemos essas vozes visíveis. E mantermos viva essa capacidade que já tivemos na nossa infância de nos deslumbrarmos. Por coisas simples, que se localizam na margem dos grandes feitos.

(...)

Só se escreve com intensidade se vivemos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de ser vivido por sentimentos. A escola muitas vezes nos “aconselha” a olhar o mundo através de uma só janela. E acreditarmos que só é verdade aquilo que for sujeito ao veredicto da ciência. Assim fechamos a nossa disponibilidade para outras verdades. Ficamos mais pobres, mais centrados no nosso isolamento.

Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo, Mas eu preferia ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilha com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagens. Entendermos e partilharmos a língua das árvores, os silenciosos códigos das pedras e dos astros.

Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilharmos este universo. Para escutarmos histórias que nos são, em todo momento, contadas por essas criaturas.

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