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Versão 3.2/2008: Tudo na vida é uma questão de prioridade, comedimento e tolerância.
segunda-feira, 12 de junho de 2006
A teoria de Darwin à luz da ficção
Por Euzinha*

"O que Darwin teria a dizer a Shakespeare? E mais, o que nós, humanos, guardaríamos em comum com melros, elefantes-marinhos, gorilas e morcegos? A resposta estaria na evolução, na necessidade comum de reprodução e propagação de genes às gerações futuras, é o que nos dizem o sociobiólogo norte-americano David P. Barash e sua filha, Nanelle, estudante de biologia e literatura, no despretensioso Os ovários de Mme. Bovary (Relume Dumará), recém-lançado no Brasil. Os autores fazem uso de personagens famosos da literatura mundial, clássica e contemporânea, para dissecar comportamentos, e mostrar que, se constituímos a mais sociável das espécies, com a maior capacidade de raciocínio e considerada a mais evoluída, é simplesmente porque somos, antes de tudo, seres biológicos, moldados durante milhares de anos pela seleção natural.

Machos ciumentos, donzelas à procura de um marido, nepotismo genético, competição entre pais e filhos, rejeição do filho bastardo, e muitas outras ações e sentimentos bastante conhecidos de todos nós, não são exclusividade dos humanos. Sobre quase todos os capítulos do livro paira a famosa frase em que Dobzhansky assevera que "nada faz sentido a não ser à luz da Evolução". Espécie de mantra para os amantes da biologia evolutiva, a afirmação deste que é considerado um dos pais da genética indica ser justamente esse traço que nos une às outras espécies animais.

Otelo casa-se com a adorável Desdêmona. Seu ex-assistente, Iago, consegue convencê-lo de que a jovem esposa o trai com seu atual braço direito. Otelo mata Desdêmona e depois a si mesmo. Era um homem ciumento, mas, antes de tudo, um macho da espécie Homo sapiens, e machos são natural e evolutivamente inseguros: sabem que o tempo todo há outro de olho em sua mulher e nunca têm certeza se são mesmo os pais dos filhos que criam.

As mulheres, por sua vez, estão permanentemente à procura do parceiro ideal - que o digam a Bridget Jones de Helen Fielding e as heroínas dos romances de Jane Austen. Perceber que nem sempre o mais atraente é o mais seguro, saber quem será o melhor provedor de recursos, garantir o cuidado dos filhotes, são dilemas com os quais as fêmeas de todas as espécies têm que lidar. E se são elas que escolhem os (supostamente melhores) machos, como podemos explicar a existência de mulheres adúlteras, como Madame Bovary, de Gustave Flaubert? A teoria evolutiva hoje já se atreve a responder, segundo os autores. Por não encontrar o tão desejado "pacote completo" com o qual todas sonham (recursos, segurança e atrativos físicos), algumas fêmeas garantem o futuro da prole ("ele pode criar meus filhos") criando um relacionamento estável com um macho, sem que deixem de seguir buscando os "melhores genes" ("gostaria que meus filhos tivessem os olhos e a força dele") em outros.

Os Barash ainda colocam sob o microscópio outras teorias darwinianas: a seleção de parentesco, como em O Poderoso Chefão, de Mario Puzzo (sempre vale mais a pena investir em um gene parecido com o seu); a redução de investimento parental em relação a filhos adotivos, como em Cinderela, dos irmãos Grimm, Os Miseráveis, de Victor Hugo, e Harry Potter, de J. K. Rowling (por que investir energia em um filho que não é seu?); o conflito entre pais e filhos, em O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski (os pais querem o melhor para os filhos, ou para si próprios?); e o suposto altruísmo de Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas (só vale a pena ajudar se isso trouxer benefícios, diretos ou indiretos).

É, sem dúvida, um livro para dividir opiniões: os teóricos da crítica literária podem encará-lo como uma afronta; biólogos evolutivos possivelmente irão considerar seu potencial didático; para os leigos, decerto representa uma forma leve e divertida de conhecer as teorias científicas e – por que não? – a si mesmos. Vale lembrar que a obra não tem a intenção de simplificar o olhar e reduzir a literatura a algumas poucas teorias científicas, como fazem questão de assinalar os autores, no capítulo introdutório. Até porque os cientistas, biológicos ou sociais, ainda não sabem explicar as razões do surgimento da literatura na espécie humana e seu real significado para a nossa cultura. Consideremos, então, que há várias formas de interpretação da arte e esta é apenas mais uma.

Os Barash, no mínimo, ajudam a suscitar a pergunta: por que personagens da literatura são universais e eternos? Não seria porque, por mais irreais que pareçam, reconhecemos nossos atos e sentimentos nos seus? Como observou Mark Twain, "a única diferença entre ficção e não-ficção é que a ficção deveria parecer completamente verossímil". Otelos, Cinderelas e Madames Bovarys fazem parte do nosso dia-a-dia. Darwin, seus predecessores e discípulos, só identificaram cientificamente o que os escritores já sabiam. Muito mais do que um livro sobre livros, Os ovários de Mme. Bovary trata essencialmente da natureza humana, na sua forma mais primitiva".

*Doutora em Ecologia